Vinte de novembro
Dom Zanoni Demettino Castro
Bispo diocesano de São Mateus-ES
Bispo diocesano de São Mateus-ES
Aos 20
de novembro do ano 1695, tombava Zumbi dos Palmares, o grande ícone da resistência
do povo negro e da luta contra a escravidão.[1]
Nascido
aproximadamente quarenta anos antes, em um dos mocambos do quilombo de Palmares, o
pequeno menino foi raptado no mesmo ano do seu nascimento pelo chefe da tropa de
Brás da Rocha Cardoso e levado para a freguesia do Porto Calvo, uma pequena vila do
Recife, sendo entregue ao Padre Antônio Melo para que se encarregasse de sua criação.
[2]
Poderíamos perguntar: por
que o Padre Melo não teve uma postura mais contundente, contrária à escravidão?
Por que a Igreja, árdua defensora dos indígenas, não assumiu, naquela época,
com o mesmo zelo, a luta contra esse odioso crime? Podemos aceitar a premissa
de que a escravidão não se constituía uma opção dentro do Brasil, mas um
imperativo do sistema implantado no país com a colonização portuguesa?[3]
Não podemos negar que a escravidão era uma realidade profundamente arraigada[4], poucas eram
as vozes que se levantavam para combatê-la. Entretanto,
algumas com caráter profético ecoam até hoje[5].
Qual teria sido o destino
daquele menino franzino caso tivesse caído nas mãos de um mero senhor de
escravos? Seria Zumbi o mesmo líder se sua inteligência e capacidade não fossem
aguçadas? Podemos compartilhar da visão de que a formação que ele recebeu do
pároco foi irrelevante para o desempenho de sua missão?
Neste momento especial em
que o Santo Padre, o Papa Bento XVI nos chama a todos a refletirmos acerca da
fé e dar razão da nossa esperança, oportunidade propícia para nos perguntar
como viver o mandato evangelizador do Mestre Jesus, vale a pena sublinhar o
papel fundamental do pároco de Porto Calvo, Padre Antonio Melo, na educação
integral daquele menino batizado com o nome de Francisco. Além de educar essa criança na fé católica, iniciando-o no estudo das Sagradas
Escrituras, ensinou-o a ler e escrever e ofereceu-lhe ainda noções de latim. [6]
Atrevo-me a afirmar que a
atitude daquele pároco de aldeia, embora tímida para nossa sensibilidade
contemporânea, teve uma grandiosa força profética. Ainda hoje, passados
trezentos anos, tal atitude consegue ser um testemunho relevante para aqueles
que acreditam que a reparação desse crime de lesa humanidade passa
necessariamente por ações afirmativas. Alegro-me com tantas iniciativas
exitosas nesta direção acontecendo neste nosso imenso Brasil.
Sobre os mantos de Nossa
Senhora Aparecida os Bispos da América Latina e do Caribe, em sua V Conferência,
constataram que a história dos afro-descendentes “tem sido atravessada por
uma exclusão social, econômica, política e, sobretudo, racial, onde a
identidade étnica é fator de subordinação social”[7].
Embora vivamos num novo tempo, numa nova época em que não se admitem
etnocentrismos, xenofobismos e preconceitos, os afro-descendentes “são
discriminados na inserção do trabalho, na qualidade e conteúdo da formação
escolar, nas relações cotidianas”[8]. As conseqüências dos 300 anos de
escravidão ainda não foram suficientemente reparadas. Os números estatísticos
são nítidos: há “um processo de ocultamento sistemático dos valores, da
história e da cultura dos afro-descendentes.[9] A formação superior, que deveria
ser um direito garantido a todos, tem sido uma meta quase impossível de ser
alcançada, dificultando ao negro o acesso às esferas de decisão na sociedade”
[10].
Padre Melo percebeu, desde
cedo, que aquele menino não era somente um “neguinho” que deveria ser cuidado,
mas alguém com grande capacidade de liderança e inteligência. Os afro-descendentes
“emergem agora na sociedade”[11] “assumindo uma atitude mais
protagonista” conscientes do poder que têm nas mãos e da possibilidade de
contribuírem na construção de uma nova sociedade, justa e solidária[12].
O negro nunca aceitou pacificamente a
escravidão. A resistência e a luta eram realidades bem presentes na sua
vida. No século XVII,
negros fugidos dos engenhos de açúcar fundaram na serra da Barriga o quilombo
de Palmares, no atual território do Estado das Alagoas, terra da promissão e da
liberdade, onde se viviam a partilha e a solidariedade, paraíso para todo negro
escravizado.
Zumbi, interpelado pela situação em que viviam seus irmãos negros,
compreendeu que o seu destino estava ligado à resistência e à luta contra a
escravidão, e que não deveria limitar-se a viver tranqüilamente em Porto Calvo.
Assim, em 1670, aos 15 anos de idade, não querendo mais ser escravo, foge e
regressa a Palmares, tornando-se, aos poucos, um grande guerreiro;[13]
conhece como ninguém o modo adequado de defender e resistir às tropas inimigas.
Inteligente e astuto, quando o Governador da capitania de Pernambuco, Pedro de
Almeida, propôs ao chefe Ganga Zumba um acordo[14], Zumbi discorda, não aceitando fazer concessões e não admitindo, pois, que uns negros ficassem
libertos e outros continuassem escravos.
O
quilombo dos Palmares[15]
crescia a cada dia; para lá se dirigiam, além dos negros, indígenas e brancos
pobres. No seu auge, chegou a ter mais de 1500 casas, contando com mais de 30
mil moradores. Transformou-se em estado autônomo, resistindo a ataques
holandeses, luso-brasileiros, bandeirantes e paulistas. Foram mais de cem anos
de resistência. A organização e a estrutura do quilombo amedrontaram, tanto aos
senhores de engenho, quanto ao governo colonial. Não faltaram apoio financeiro e forte
artilharia para que Domingos Jorge Velho e Vieira de Mello, com suas tropas,
atacassem e vencessem o Macaco, principal mocambo de Palmares. Os quilombolas
palmarinos, embora lutando bravamente, não conseguiram resistir: a
maioria morreu lutando. Zumbi, embora ferido, conseguiu fugir. Durante quase
dois anos, após a luta, continuou organizando escravos da região e combatendo
senhores de engenho e as forças do governo colonial.
Contudo,
em 20 de novembro de 1695, Zumbi, traído por um de seus principais comandantes
— Antônio Soares, que trocou sua liberdade pela revelação do esconderijo — foi
então capturado e torturado. Jorge Velho matou o rei dos Palmares e o
decapitou. A cabeça do grande guerreiro ficou muito tempo na Praça do Carmo, em
Recife.
A
morte de Zumbi não pode ser interpretada como um fracasso e sim entendida como
conseqüência lógica de sua vida comprometida e doada. Nesta data significativa,
faço minhas as palavras de Dom Helder, o nosso grande profeta, no seu belíssimo
MARIAMA: “Mariama, Nossa Senhora, Mãe de Cristo e Mãe dos homens, mãe dos
homens de todas as raças, de todas as cores, de todos os cantos da terra. O
importante, Mariama, é que a CNBB, toda a Igreja, embarque de cheio na causa
dos negros”.
[1] Cf. MATOS, Henrique C. J.
Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Tomo 2 Ed.
Paulinas, SP 2002, pp. 142-143.
[2] Ibidem 143.
[3] Cf. Hoornaert, E, ; Azzi,
R; Grijp, K; Brod, B. História da Igreja no Brasil, Ed. Vozes, Petrópolis, 1977; p. 264.
[4] Para compreender melhor a
escravidão no Brasil e o seu caráter funcional leia Hoornaert, E, ; Azzi, R;
Grijp, K; Brod, B. História da Igreja no Brasil, Ed. Vozes, Petrópolis, 1977; p.
258.
[5] O Pe. José Oscar Beozzo
elenca algumas vozes discordantes ao sistema escravocrata no Brasil in Beozzo,
O. org. História da Igreja no Brasil, tomo II/2.Ed. Vozes, Petrópolis, 1977; p. 265.
[6] Alguns historiadores
afirmam que havia entre o Padre Melo e o líder de Palmares uma verdadeira
amizade, cf MATOS, Henrique C. J. Nossa História. 500 anos de presença da
Igreja Católica no Brasil. Tomo 2 Ed. Paulinas, SP 2002; p. 143.
[7] Documento de Aparecida 96.
[8] Ibid.
[9] Ibid 402.
[10] Ibid 533.
[11] Ibid 91.
[12] Ibid 75.
[13] Cf. MATOS, Henrique C. J.
Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Tomo 2 Ed.
Paulinas, SP 2002; p. 143.
[14] A coroa portuguesa nunca
permitia acordos entre africanos e colonizadores. A resposta do dia 7 de
fevereiro de 1686 sobre o acordo com Palmares dizia o seguinte: “os africanos
foragidos vivem em pecado mortal, são revoltosos contra a vontade de Deus, e
não se faz paz com inimigos de Deus”. Beozzo, O. Org. História da Igreja no
Brasil, tomo II/2.Ed. Vozes, Petrópolis, 1977; p. 256.
[15] Muito temido pelos
colonizadores os quilombos significavam a esperança dos negros fugitivos e
brancos pobres, uma alternativa de Brasil, um Brasil fraternal. Cf. MATOS,
Henrique C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no
Brasil. Tomo 2 Ed. Paulinas, SP 2002; p. 398.
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